No Recife, teatro ficou pequeno para receber espetáculos de dança e manifesto
Público do Teatro Hermilo Borba Filho vibrou ao assistir “Mundo Ao Redor”, “(1/7) do Tempo” e “Gritaram-me / Vogue”
A busca pelo lugar do indivíduo dentro do espaço coletivo e da natureza foi o fio de ligação entre os espetáculos apresentados nesta sexta na programação do Festival Cena Cumplicidades. Lotado, o Teatro Hermilo Borba Filho vibrou ao receber “Mundo Ao Redor”, “(1/7) do Tempo” e “Gritaram-me / Vogue”. Logo em seguida, “O Samba do Crioulo Doido” impressionou o público do Teatro Apolo.
Coreografia da pernambucana Adriana Carneiro baseada na teoria da Umwelt, de Jakob von Uexküll, “Mundo ao Redor” deu as primeiras pistas do que viria a ser construído nos próximas obras encenadas na noite através da exploração do encontro entre mundo e mente.
A partir da rigidez do seu corpo, que se estendia em movimentos precisos e repetitivos e sugeria um sistema de movimentação, Adriana defendeu a ação imperativa que tem a mente na leitura do mundo, que vai partir sempre de sistemas de interpretação como a linguagem, o espaço social, o sentimento. Enquanto dança, ela interage com as projeções de vídeo que compõem a cenografia da obra e passa a impressão de que os vídeos projetados respondem à sua interação.
Os três últimos espetáculos apresentados vão além da contemplação de um indivíduo humano qualquer para trazer à tona questões existenciais que dizem respeito à pessoa negra e à expressão do seu corpo, considerando a árdua relação que esse corpo tem com o espaço social (pós)colonial no Brasil e no mundo. Desse universo temático vieram as sensações mais marcantes da noite.
Em “(1/7) do Tempo”, os bailarinos do Coletivo Corpo Mundo, dirigidos pelo moçambicano Manuel Castomo Mussundza, expõem o percurso da vida do ser humano em sua natureza de conflito e recomposição. Num primeiro momento da peça, o curso natural de movimentos largos e fluídos do personagem em cena era repentinamente interrompido por uma força que o levava com força ao chão em menos de um segundo.
A essa quebra do curso “natural” da dança quase sempre se segue um processo de recuperação do personagem. Na dramaturgia, esse processo é sempre catalisado pela simbologia da natureza, do coletivo ou pela energia interior do indivíduo. Aí entra o papel central da ancestralidade africana no espetáculo.
Fortemente inspirado na expressão corporal oriunda dos Iorubás e dos Bantos, povos da África Ocidental, a obra não traz as referências dos ancestrais africanos somente na coreografia e na trilha sonora, mas também no centro da sua mensagem. A raiz do conhecimento ancestral nasce junto com o estorvo que não falha em atingir a vida desses personagens, mas é ele também que os leva, em resiliência, até o fim de suas histórias.
Como parte desse estorvo, a produção expõe o racismo e o impacto dessa forma de aniquilação do ser humano na atividade e na expressão das pessoas negras, colocando em questão o espaço que elas ocupam na sociedade. A participação especial da poeta e professora Odailta Alves declamando “Racismo”, texto do seu livro “Clamor Negro”, fecha o ciclo de manifestação de conflitos na história, dessa vez deslocando o foco desses conflitos de um lugar “natural” do curso da vida para o lugar social onde se constrói o racismo.
Ainda emocionada, logo depois da sua apresentação, a bailarina Poliane Patrick trata de ligar os pontos por onde passa a montagem: “É a vida em si, né. A gente está aqui hoje. Um sétimo do tempo, não está mais. A diferença, a diversidade. Tudo acontece um sétimo de tempo”, explica.
Encerrando a programação da noite no teatro Hermilo Borba Filho, “Gritaram-me / Vogue” condensou um histórico longo de resistência do corpo negro nas sociedades (pós)coloniais em seis minutos de afirmação da pluralidade de performances que podem nascer desse corpo. “Eu acho que parte da proposta é mostrar que existe outro lado do corpo negro”, conta o bailarino e criador da coreografia Edson Vogue.
Para tanto, Edson se utiliza do que há de interseção entre os elementos do frevo, do vogue e, ocasionalmente, da capoeira e do samba. O resultado é a corporeidade ágil e impetuosa, mas simultaneamente elegante, que encheu o palco do Hermilo e os olhos da plateia. “Eu procuro mais a base organizacional dessas referências afrobrasileiras e, a partir disso, exploro-as junto com o vogue e construo esse corpo”, explicou o artista, que diz se inspirar bastante na cultura queer e underground dos anos 1970 e 1980.
A base narrativa da obra está na justaposição do poema “Me Gritaron Negra”, da peruana Victoria Santa Cruz, e de “Formation”, canção lançada em 2016 pela estadunidense Beyoncé, hoje uma das mais fortes referências de antirracismo e empoderamento negro na cultura pop. Esses dois textos apontam para a um momento de reasserção em que o indivíduo se dispõe a fazer da opressão que sofre a base da sua resistência - processar o rótulo de “negro” e dar como resposta a potência da ancestralidade africana e da sobrevivência dos seus antepassados na sua própria postura.
Para Edson Vogue, o veículo de resgate dessa ancestralidade é a dança, que, além disso, resgata também os direitos tirados do corpo negro e queer. “É o corpo que as pessoas entendem, na gíria, como galeroso”, ele conta. “Essa peça é o momento em que eu posso mostrar que tudo que a gente faz na nossa vida é performance. Estamos performando o tempo todo. Eu não gosto de estar em uma só performance de identidade. Isso é também o que tento mostrar. Não é o negro. São os negros”, completa.
No sábado (04), a programação do Cena Cumplicidades continua com a peça “Alguém pra Fugir Comigo”, a partir das 19h no teatro Hermilo Borba Filho e com a reprise de “O Samba do Crioulo Doido”, no teatro Apolo.
TEXTO POR GUSTAVO HENRIQUE