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Alguém pra fugir comigo encerra programação do Cena Cumplicidades no Recife

Festival teve um dos maiores e mais diversificados públicos em 2017. Espetáculo terá nova apresentação neste domingo

“Alguém pra Fugir Comigo”, do Resta 1 Coletivo de Teatro, encerra a programação do festival Cena Cumplicidades em 2017. Apresentado na noite do último sábado (04), seguido da reprise de “O Samba do Crioulo Doido”, o espetáculo permanece no palco do teatro Hermilo Borba Filho pela programação do festival até o domingo (05). Em seguida, segue independentemente em curta temporada (10 a 12 de novembro) no mesmo local. 

A encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana trata da opressão sofrida pela camada “subalterna” da sociedade por meio dos problemas cotidianos - mas sempre difíceis - pelos quais passam pessoas que vivem “abaixo” de grandes empresários e governantes. Para tanto, apoia-se no contexto histórico do século XIX no Brasil e na Europa e dos dias atuais para evidenciar essa opressão como um dispositivo que sempre esteve sustentando política e economia. 

Por mais que a dramaturgia tenha tempo e local moderadamente definidos, o diretor Quiercles Santana explicou à equipe do Cena Cumplicidades que a história se aplica a qualquer lugar onde também se sobressaia a sujeição de determinado grupo de pessoas. “É sobre pagar as contas e não ter direito a nada”, ele resume.

“Eu diria que a obra aposta na micropolítica, na política do indivíduo, enquanto escarnece a política grande, essa política institucionalizada que está sentada nos cargos de poder, na prefeitura, no governo do estado, na esfera federal”, explicou Santana. O roteiro é baseado em escritos de autores como Henrik Ibsen, Bertold Brecht e Guy Debord, dos próprios criadores e em uma gama de textos de cunho político. 

A narrativa em “Alguém pra Fugir Comigo” não é contínua e se constrói pouco a pouco pelo espectador, enquanto ela ou ele liga os fragmentos de histórias completas manifestados em cena pelo elenco de sete artistas. O desenvolvimento sequencial de um número alto de curtas cenas abre espaço para que o público as conecte como quiser e crie da peça a leitura que melhor o convir. Comum a todos esses fragmentos e presente em todas as cenas está a sensação de urgência, a necessidade de fugir suscitada pelo estado repugnante e corrosivo do presente.

“Tudo isso foi testado para a gente entender como criar um estilo que suporte o nosso discurso sem estar mencionando exatamente a história de uma personagem única. Não tem uma personagem que liga um enredo. É um espetáculo fragmentário em que as cenas valem por elas mesmas”, acrescenta Quiercles Santana.

A única personagem que se repete em mais de uma cena é Liberdade, mulher negra escravizada que foge da vida em cativeiro em tempos de tentativa de instauração da lei do ventre livre. A violência quase eternizada pelo sistema escravocrata é, por sinal, uma das bases que perpassam todas as questões levantadas no espetáculo. 

Essa violência serve como lente de observação para problemáticas atuais, a exemplo da violência policial contra pessoas negras e do assédio sexual sofrido por mulheres no transporte público, mas também como uma lupa que faz entrever a permanência da escravidão no Brasil e no mundo de hoje. 

Quiercles justifica a escolha desses temas: “O teatro é um lugar bom para se digerir um pouco sobre isso, para pensar um pouco mais detidamente sobre aquilo. É um arranjo novo para as coisas que estão dadas na vida do cidadão comum. A gente traz essas coisas para colocá-las sob uma nova luz e a pensarmos um pouco mais sobre elas”. 

Assim, a montagem consegue trazer à tona problemáticas que dizem respeito à dignidade historicamente exposta das mulheres trans e também cisgênero, de africanos e afrobrasileiros inseridos em uma sociedade (pós)colonial, de lésbicas e homossexuais, de refugiados políticos e de qualquer um que precise desesperadamente escapar da sua casa para sobreviver.

Proveniente da união de uma turma de interpretação para teatro do Sesc Santo Amaro, o coletivo Resta 1 tomou para si o desafio de montar “Alguém para Fugir Comigo” sem patrocínio ou apoio de instituições públicas através de seleção por edital. O espetáculo surgiu de um exercício cênico homônimo provocado pelo impacto das manifestações que ocorreram em junho de 2013 por todo o Brasil. 

“Eu acho que o edital é bem-vindo, mas o artista não pode só dizer as coisas que precisa dizer se estiver apoiado por esse dinheiro público. Se você é artista e a dor dói em algum lugar, você grita. Você não grita somente se o governo federal botar a mão em cima”, aponta o encenador e professor Quiercles. 

“É muito gratificante para a gente ter conseguido, ao longo de um ano, produzir cada coisa que está presente no espetáculo. Testar cada palavra, cada canção, cada movimento sem ter nenhum respaldo de financiamento público ou privado (que não o nosso)”, conclui.

TEXTO POR GUSTAVO HENRIQUE